terça-feira, 3 de abril de 2012

A QUENOSE DO FILHO NO MISTÉRIO PASCAL - III

1.1. O Getsêmani



O lugar aonde Jesus foi naquela noite após a ceia já era revelação do drama no qual ele seria chamado a viver; diz-nos o texto sagrado:“tendo atravessado para o outro lado da torrente do Cedron”( Jo 18,1).  O Cedron[1] evocava o lugar da tristeza, Jesus vive no jardim deste lugar o seu momento de escuridão interior, de angústia suprema, de trevas, não é por acaso que esta hora é denominada pelo Evangelista como “a hora das trevas”(Lc 22,53).

O esvaziamento de Jesus se inicia quando Ele chega ao jardim, isto é perceptível nas palavras do Evangelho de Marcos: “caiu por terra” (Mc 14,35) ou nas palavras de Lucas: “ajoelhou-se para orar” (Lc 22,41). Por que Jesus cai sobre a terra? Vejamos: cair com o rosto por terra era uma posição de oração e indicava o abandono total à vontade de Deus; na oração de Jesus, caindo por terra, se revela a sua entrega ao seu Deus, para deixar-se conduzir por Ele, é a quenose da obediência, de ser conduzido pelo Pai para a Paixão. Todavia, o cair por terra revela também o peso dos pecados da humanidade que Jesus tem que carregar sobre si e, por isso, o esmagam, a ponto dele sentir medo e angustiar-se, era a perturbação de beber o cálice da dor que o faria vítima do pecado.

Jesus enfrenta o pavor, e, consequentemente começa a viver a sua agonia (agwnia), em grego quer dizer: “luta”. Jesus de forma espiritual e real luta contra o pecado que o faz temer a Hora e o cálice da Ira divina, por conseguinte, o pecado acerta um golpe em sua alma, a ponto de numa atitude quenótica, o seu corpo ficar fraco, os joelhos dobrarem, e Ele cair por terra.

Esta luta contra o pecado esmaga em extremo a Jesus, a ponto de já na terra do Getsêmani derramar o seu sangue por muitos, como sinal de salvação; “Cheio de angústia, orava com mais insistência ainda, e o suor se lhe tornou semelhante a espessas gotas de sangue que caíram por terra”(Lc 22,44). Um jardim (Éden) foi onde se iniciou o pecado, noutro jardim (Getsêmani) a obra da redenção se inicia, e será em outro jardim (Calvário) que da árvore plantada, o sangue do rebento de Davi será derramado em profusão, qual seiva trazendo vida em plenitude, e de lá ele sairá vencedor, consumando a obra de redenção.

A perturbação interior, o medo de enfrentar a morte, de beber o cálice da ira divina que “deve ser bebido até as borras pelos pecadores”(Sl 75,9), fez Jesus experimentar uma angústia mortal, fruto da aceitação do pecado da humanidade, de ser vítima dele. Jesus sente o pecado como algo próximo dele, “Ele carregou os nossos pecados em seu corpo” (1Pd 2,24). Jesus experimenta o abandono de Deus, torna-se maldição pela humanidade, ele enfrenta o Timor Gehennalis,



A agonia do Monte das Oliveiras era um com-padecer com os pecadores, de tal natureza, que a iminente e real perda de Deus (poena damni) por parte deles foi assumida pelo amor encarnado de Deus sob a forma de Timor Gehennalis: no instante em que se descarrega o pecado do mundo, Ele já não se distingue, nem o seu destino, daquele dos pecadores.[2]



Balthasar observa que neste ínterim Jesus vive também o mistério do isolamento, do abandonado que o acompanhará até o suplício da cruz; isolamento de Deus e o isolamento dos discípulos. No que se refere ao isolamento dos discípulos é possível perceber a partir das expressões evangélicas as quais indicam uma ordem dada por Jesus aos seus discípulos para que estes se mantenham afastados do momento crucial no qual o Mestre enfrentará. As expressões evangélicas apontam para isso, em Lucas: “afastou-se deles” (Lc,22,41); em Marcos e Mateus se vê claramente a ordem de Jesus: “Permanecei aqui enquanto vou” (Mc14,32), “Permanecei aqui” (Mt 26,38). Em João há uma diferença no drama: “deixai que estes se retirem” (Jo 18,8).

Este gesto de Jesus revela que ele deverá sofrer sozinho o mistério de sua sagrada paixão, “deixarei eu de beber o cálice que o Pai me deu?” (Jo 18,11). A experiência de sentir em sua carne o pecado tem como conseqüência o distanciamento de Deus, pois é isto que de fato acontece, estar próximo do pecado é afastar-se de Deus.  Von Balthasar afirma: “O isolamento em face de Deus que se torna estranho a Ele, mas que ainda não desapareceu e a quem Jesus se dirige com o grito terno e suplicante: Abba”[3].

Jesus suporta experimentar toda esta luta angustiosa porque ele ama o seu Deus e Pai e vive para fazer a sua vontade (Jo 5,19). Esta obediência caminha para culminar na cruz. Este instrumento vil e desprezível é também a causa do medo de Jesus que iria se tornar objeto de escárnio e opróbrio.

Neste aniquilamento de Jesus carregando sobre si os pecados da humanidade, qual a razão que o levou a aceitar carregar sobre si o que não era seu? A resposta é  simples, o Amor que de forma esponsal e obediente revela todo o dinamismo da vida trinitária. A paixão deve ser entendida como epifania do amor de Deus, amor do Pai pelo Filho que se derrama em nós como dom salvifico, e amor do Filho ao Pai por nós. Von Balthasar dirá: “Aqui no mistério escuro da alienação entre Deus e o Filho, que carrega os pecados como o lugar autêntico da vicária representação, revela a impotência toda poderosa do amor de Deus"[4].  

Contudo, a tentação enfrentada por Jesus da não aceitação do cálice da paixão, “Meu Pai se é possível, que passe de mim este cálice” (Mt 26,39), foi vencida pelo amor filial que ele tem pelo Pai, “contudo não seja feito como eu quero, mas como tu queres” (Mt 26,39), “Meu Pai, se não é possível que esta taça passe sem que eu beba, seja feita a tua vontade” (Mt 26,42), não se trata de uma obediência cega, mas de uma comunhão de amor que existe no próprio dinamismo intratrinitário, entre o Pai e o Filho.

Nesta atitude de Jesus vemos a tradução humana do amor trinitário filial, no sim de Jesus se dá a passagem da vontade humana para vontade divina. Para ficar mais claro busquemos entender como acontece esta passagem: O “eu” é o Verbo que fala em nome da vontade humana que ele possui ao assumi-la com toda liberdade, e o “tu” é a vontade trinitária que o Verbo tem em comum com o Pai. No sim (Fiat – “seja feito” ou “faça-se”) de Jesus como o fiat da redenção, se dá a livre aceitação da vontade humana de uma pessoa divina, por conseguinte,



Ali se vê que a aparente oposição entre as vontades divina e humana é a perfeita expressão da quenose de Deus na natureza humana, sofre os efeitos do pecado e, mesmo sem pecado, resiste antes de expressar a unidade da vontade trinitária salvífica”[5].  



Igualmente, na passagem do “Não o que eu quero, mas o que tu queres”(Mt 26,39) está contida e ao mesmo tempo revelada misteriosamente a páscoa da humanidade, “a páscoa do homem se une com a páscoa de Deus. Aquele que devia combater, isto é, o homem, encontrou-se com Aquele que podia vencer, isto é, Deus”[6], verifica-se que no sim de Jesus, na passagem do “eu” para o “tu”, está revelado o êxodo de Cristo e da humanidade ao mundo do Pai. É o Verbo obedecendo humanamente ao seu Deus Pai.

Em outras palavras, o sim de Jesus foi um ato teândrico (divino-humano), expressão da atitude eterna do Filho que voltado para o Pai vive numa disponibilidade total de si, uma eterna oferenda de amor como ação de graças (Eucaristia) ao Pai. Portanto, “na existência do Filho obediente, brilha também com toda clareza o mistério da Trindade divina, pois o Filho não obedece a si mesmo, mas sim a Outro, o Pai. O amor eterno que sente é o que torna possível esta obediência”[7].

 Esta quenose da obediência faz com que Jesus seja movido por seu Deus e Pai e pelos homens até a sua hora; Jesus que se entrega obedientemente em amor à vontade do Pai, num sim que redime o mundo.

Adentraremos num ponto importante no drama da Passio Christi, o mistério das entregas como expressão da quenose do Filho de Deus.



[1]. Quidron, que os latinos traduziram “Cedron”, significava a escura, turva, triste. NERY. P.J. de Castro. Paixão e Morte de Jesus. p. 68.
[2] BALTHASAR, Hans Urs Von. Mysterium Paschale  in Mysterium Salutis III/6 p. 69.
[3]Ibid. p. 66.
[4] BALTHASAR, Hans Urs Von. Teodramática 4. La Accion. p. 312. Aquí, en el misterio tenebroso de La alienacion entre Dios y el Hijo que carga con los pecados por ser el auténtico lugar da representación vicaria, se revela la impotencia todapoderosa del amor de Dios”.
[5] RIBEIRO, Clarita Sampaio Mesquita. Mysterium Paschale - A quenose de Deus segundo Hans Urs Von Balthasar. p.102.
[6] CANTALAMESSA, Raniero. O Mistério da Páscoa. p. 32.
[7] BALTHASAR, Hans Urs Von. Quem é Cristão? p. 52.

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