quarta-feira, 4 de abril de 2012

A QUENOSE DO FILHO REVELADA NO MISTÉRIO PASCAL - IV

1.3  O Mistério das Entregas



O mistério do Getsêmani terminava com a atitude obediente de Jesus, quenose da obediência numa união de vontades (Pai e Filho), resultando na disponibilidade do Filho em experimentar a Paixão e Morte, o deixar-se ser conduzido para a hora máxima da manifestação do amor levado até o fim. E é justamente aqui que se abre o mistério das entregas, quando Jesus diz: “basta! A Hora chegou! Eis que o Filho do Homem será entregue[1] (Mc 14,41).  Esta entrega já havia sido predita: “eis que subiremos para Jerusalém e o Filho do Homem será entregue” (Mc 10,33), “Ele será entregue aos gentios, escarnecido, ultrajado, coberto de escarros, depois de o açoitar o matarão” (Lc 18,31).

Em todos os relatos o verbo entregar (Paradidomai, Tradere) aparece na voz passiva, isto indica a ação de outro sobre o Filho, este Outro é Deus Pai que age desta forma não porque é irado, como na visão vetero-testamentária, mas por que é amor; eis, pois a razão da entrega: “Deus amou tanto o mundo que entregou seu Filho Único” (Jo 3,16).

Von Balthasar faz a seguinte asserção: “O Pai deu o seu Filho por amor do mundo e o quinto, onde todas as paixões, incluindo o abandono de Deus, é expressamente referido a este amor”.[2] Esta entrega que o Pai faz de seu Unigênito ao sofrimento toca também o próprio Pai, que faz a experiência de Abraão, não poupou seu Filho, mas o entregou. Aqui se deve evitar qualquer idéia de patripassianismo[3]. Este abandono que o Pai faz do Filho culminará na experiência que o Filho faz na ara da cruz de ser maldição, um abandono irrepetível.

A segunda entrega diz respeito ao Filho que também está em estreita ligação com a do Pai. Nesta renúncia da própria vontade como revelação de sua quenose, e manifestação de seu amor, Jesus se dispõe a viver a sua Paixão fazendo-se solidário com os pecadores, experimentando as trevas, a escuridão, o abandono, a separação de Deus, “o Filho se entrega ao seu Deus e Pai por nosso amor e em nosso lugar: e a entrega tem toda a densidade da oferta dolorosa”.[4] A entrega do Filho é expressa assim:“Dou minha vida... Ninguém a tira de mim, mas eu a dou livremente” (Jo 10,17.18).

Jesus ao se entregar revelou-se impotente, se fez Servo do Senhor, o Pobre de Deus, se desfez de todo o poder que possuía, para viver a humilhação, sendo esbofeteado, cuspido, maltratado em favor e no lugar da humanidade, da raça de Adão. Aquele que é pastor se faz cordeiro a ser imolado, se faz também ovelha a ser entregue nas mãos dos tosquiadores, “o amor humano surge porque o outro é digno de amor. Em Deus é o contrário, Deus é amor e vai em direção do perdido, do que por si não é digno de amor”.[5]

Jesus em amor quenótico qual cordeiro, vai silenciosamente como sinal de obediência ao matadouro, ao patíbulo da cruz. É o admirável esvaziamento de Jesus, daquele que ama desinteressadamente, uma entrega de si capaz de ir ao exílio dos pecadores, para trazer a ovelha perdida (humanidade imersa no pecado), como oferta pascal a Deus Pai.

Estas entregas nós a classificamos como divinas, agora trataremos das entregas humanas. A primeira é a da traição do amor, Judas, um dos doze, é aquele que entrega (traditor), Jesus; não cabe aqui saber o porquê de Judas ter traído Jesus, mas em perceber a atitude de rejeição e traição do amor ao Mestre. Surge a pergunta: onde está relacionada à quenose do Filho nesta atitude? A resposta se dá no gesto de Judas e na resposta de Jesus. Vejamos, Judas traiu Jesus por meio de um sinal de amizade, embora tenha sido falso; diz-nos o texto do Evangelho de Marcos: “O Seu traidor... tão logo chegou, aproximando-se dele, disse: Rabi! E o beijou” (Mc14, 44.45). Não foi um beijo qualquer de forma rápida, pelo contrário, foi demorado e afetuoso, um gesto de amizade profunda, o verbo grego utilizado é Katafilein (kataphilein), que  indica tal ação.

Mas é na resposta de Jesus ao gesto de Judas que se revela a sua quenose. Jesus numa atitude de esvaziamento de amor chama o seu traidor de amigo: “Amigo para que estás aqui? (Mt 26,50). Deus mais uma vez se revela como amor oblativo, desinteressado, ao que não é digno de amor, Deus ama de forma verdadeira.

Prosseguindo na cadeia das entregas, Judas entregou Jesus ao Sinédrio (Mc 4,10), nesta entrega que ocasiona a perversão da Lei, também se vê uma ação quenótica de Jesus. Logo, quando Jesus é preso, num sinal de fúria, Pedro corta a orelha de um dos guardas, e imediatamente é repreendido por Jesus com estas palavras: “Guarda a tua espada no seu lugar, pois todos os que pegam a espada pela espada perecerão. Ou pensas tu que eu não poderia apelar para meu Pai, a fim de que ele pusesse à minha disposição, agora mesmo mais de dez legiões de anjos”. (Mt 26,52-53). Jesus de fato tinha poder para destruir aquele exército, é possível observar isto no relato joanino quando os guardas chegam à noite para prenderem a Luz, caem por terra ao ouvirem o EU SOU (Jo 18,6), Contudo, é aí que se revela a sua quenose, Ele deseja se entregar à morte de cruz para salvar a humanidade, por isso não resiste à prisão.

Encerrando as cadeias de entregas, o Sinédrio entrega Jesus a Pilatos, um pagão (Mc 15,1) é a perversão do Poder. Diante de Pilatos face a face no interrogatório, Jesus ficou mudo em total silêncio, eis aqui mais um ato quenótico de Jesus. Ele é o cordeiro que livremente se entrega à morte, “humilhou-se e não abriu a boca, como cordeiro levado ao matadouro, como ovelha que permanece muda na frente do tosquiador” (Is 53,7). De per si este silêncio revela um amor tremendo, “na Paixão Jesus cala-se quando a palavra não é necessária, ele prossegue a sua comunhão silenciosa com a vontade do Pai”.[6]

Este silêncio de Jesus não é uma forma de protestar, ou de tomar partido para um lado ou para o outro, mas é revelação da Verdade que é Ele mesmo, o seu silêncio é todo verdade e todo amor; “o silêncio de Jesus é a chave para entender o silêncio de Deus. quando a ‘briga das línguas é muito grande, o único modo de dizer alguma coisa é calar-se. O silêncio de Jesus... traz à luz a não verdade das próprias palavras”[7].

Estando Jesus diante de Pilatos, este o entrega para ser crucificado (Mc 15,15), aqui se fecha a cadeia das entregas no caminho da Paixão. Jesus agora foi entregue para ser crucificado, à Hora chegou, o momento para o qual ele veio está na sua frente, no ECCE HOMO entregue à morte, será possível contemplarmos o ECCE DEUS.



[1] Este verbo  Paradidomai é de muita importância no drama da Paixão aparece inúmeras vezes, nele é possível ver a quenose do Filho, o seu abandonar-se aos desígnios do Pai por que é amado por Ele, o ama e ama aos homens.
[2]BALTHASAR, Hans Urs Von. Teodramática 4. La Accion. p 296. “El Padre há entregado a su Hijo por amor al mundo, y en el quinto, donde toda La pasión, incluído el abandono de Dios, se halla referida expresamente a este amor”.
[3]  Heresia elaborada por Noeto que imputa ao Pai o sofrimento da paixão, Pater (Pai) passio (Paixão), numa má interpretação de “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30); Cristo era o Pai, então foi o Pai que sofreu a Paixão e morte. in MEUNIER, Bernard. O Nascimento dos dogmas cristãos. p. 56.
[4] FORTE, Bruno. A Trindade como História. p.34.
[5] LADARIA, Luis F. O Deus Vivo e Verdadeiro - O mistério da Trindade. p. 92.
[6] FERLAY, Philippe. Jesus Nossa Páscoa, teologia do mistério pascal. p. 100.
[7] CANTALAMESSA, Raniero. Páscoa uma passagem para aquilo que não passa. p. 19-20.

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