sábado, 7 de abril de 2012

A QUENOSE DO FILHO REVELADA NO MISTÉRIO PASCAL - VI

A IDA AO ENCONTRO DOS MORTOS

(Sábado Santo)





2. O Dia da Morte de Deus



O Sábado Santo aparece como o dia da morte do Filho de Deus, para uma melhor compreensão do mistério que envolve este dia, no qual o Filho de Deus  é posto na mansão dos mortos, como segundo dia do Tridum Mortis, onde contemplamos a sua sepultura. É mister, ainda se deter um pouco no percurso de fé que nos leva até a Cruz elevada no Gólgota para entendermos como se dá esta ida de Jesus ao convívio dos mortais.

O mistério da sexta-feira santa, foi encerrado com a crucificação de Jesus, vê-se o Corpo do Filho muito amado de Deus Pai, estendido no madeiro, qual cordeiro inocente e imolado. O Deus Onipotente e Soberano mostra-se ao mundo como impotente, fraco, pobre; a sua nudez na cruz como ato de despojamento é sinal de sua quenose total por amor ao Pai e a nós.

Jesus dando o último suspiro, entregando o seu Espírito num inteiro esvaziamento, agora está Morto; primeiramente porque é verdadeiramente Homem, e, por conseguinte, deve percorrer todo o caminho e destino da natureza humana, pois o que não é assumido, não é redimido, como ele assumiu totalmente a condição humana e mortal, ele a redime ao enfrentar a morte. Isto revela a plenitude da humanidade de Cristo assumida na sua Encarnação, porque Jesus se fez homem, vive até o fim as consequências desta condição, morre como todo e qualquer ser humano.

Nisto se compreendem as palavras da manifestação quenótica de Jesus, descritas no texto fundamental desta reflexão teológica, diz-nos São Paulo: Ele estando na forma de Deus, não usou de seu direito de ser tratado como um deus, mas despojou-se, tomando a forma de escavo. Tornando-se semelhante aos homens e reconhecido em seu aspecto como um homem, abaixou-se, tornando-se obediente até a morte e morte de Cruz”. (Fl 2, 6-8).

O despojamento que Jesus faz de sua condição divina o leva a um abaixamento total, ao ponto de ter diante de si, o destino dos seres humanos no final de suas vidas: a morte e, consequentemente, a sepultura. Num segundo momento, a morte de Jesus não é de um homem qualquer, mas daquele que é Deus verdadeiramente, pois no Drama da história da salvação, como o grande teatro onde Deus e o Homem atuam, "Jesus Cristo aparece na história como o representante de Deus, em vez disso, deve livrar até o fim o combate contra a hostilidade da liberdade humana”[1].

 Então, a morte do Filho Jesus deve ser entendida como a morte de Deus, porque,

Deus a realiza como homem, e Deus somente como homem, de modo que aqui se trata do homem, como em nenhum outro domínio. Mas não Deus como um homem qualquer, e sim, Deus que é absolutamente único, neste Homem absolutamente único o qual, por isso mesmo, é o Único, porque é Deus.[2]





Em outras palavras, aquele que morreu na cruz e foi sepultado, possui também a vida em si mesmo, não como algo que lhe é externo, mas como parte de sua própria essência, isto porque Ele é Deus, e, por conseguinte, como homem ele pode morrer, mas Nele é Deus mesmo quem entra no reino dos mortos, quem experimenta a morte. Portanto, o homem que morre é Deus, ou melhor, o Homem-Deus, numa unidade de pessoa, “sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação”[3] de Deus e do homem na única pessoa de Cristo.

 A morte de Jesus como morte de Deus é de certo modo exclusiva, porque só Ele enquanto, Deus e Homem verdadeiro pôde experimentar esta realidade em sua total profundidade, tocar o fosso do abismo. Deus agora está em contato com os mortos, e isso é um fato novo, pois, no Antigo Testamento não se conhecia um intercâmbio, uma relação direta entre o Deus da Vida e o reino dos mortais; o que se sabia a partir dos dados escriturísticos era que Deus tinha poder sobre este reino, a ponto de tirar a vida e fazer viver, “é o Senhor quem faz morrer e viver, faz descer ao Sheol e dele subir” (Is 2,6). O fato novo é que Jesus enquanto Deus entra em contato com essa realidade, agora com a morte do Filho há uma relação direta entre o Deus Vivo e o reino dos mortos.

Mas, a morte de Jesus por ter um caráter exclusivo, porque sua forma é única e somente ele pode sofrê-la, ela também é inclusiva, ou seja, está destina a atrair para si, num resgate de amor como obra de Deus Pai toda a humanidade anterior e posterior ao próprio Cristo. Lembremo-nos que ele morre, para ser o primogênito entre os mortos, portanto, “a fim de que a morte de Cristo pudesse ser inclusiva, ela devia ser, ao mesmo tempo, exclusiva e única em sua força representativa”.[4]

É inegável afirmar que Jesus não morreu verdadeiramente, sua morte pode ser testemunhada pelos acontecimentos naturais na hora de sua crucifixão, de início, destaca-se o escurecimento do céu, sinal da hora das trevas, pela Morte do Unigênito de Deus Pai; estas trevas que cobrem a face da terra na morte de Jesus revelam também o Luto do próprio Deus, a tristeza de Deus Pai, “olharão para mim e lamentarão como se fosse a lamentação por um Filho único; eles o chorarão como se chora sobre o primogênito” (Zc 12,10).

É bom entender que o luto de Deus não se refere a um arrependimento do Pai pela entrega do Filho, mas é sinal da união de amor entre Deus Pai e seu Filho Unigênito, um amor mais forte do que a própria morte, é a relação íntima que existindo no seio da Trindade em sua imanência se revela também na sua manifestação econômica na história.

Alguns sinais ainda revelam o caráter verdadeiro da morte de Jesus, diz-nos o Evangelista Mateus: “a terra tremeu e as rochas se fenderam. Abriram-se os túmulos e muitos corpos dos santos falecidos ressuscitaram”(Mt 27,51-52). Estes eventos possuem uma ligação estreita e nos revelam a profundidade da morte de Jesus como manifestação de sua quenose.

Vejamos, com o tremor da terra, as rochas se partem, se despedaçam, em decorrência disso, os sepulcros também são abertos, o sheol como lugar dos mortos, ou melhor, a própria morte, se escancara para receber a sua presa, o próprio Jesus morto. Em seu projeto de amor e salvação, Deus Pai quis que seu Filho não somente morresse por causa dos pecados da humanidade, mas também que provasse a morte, ou seja, visse, conhecesse o estado da morte, a separação entre sua alma e seu corpo, fato dado no ínterim do seu último suspiro na cruz até a ressurreição.

            Com a comprovação da morte de Jesus na Cruz, pela bela profissão do Soldado romano: “Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus”(Mc 15,39). Neste exato momento do drama pascal em que Deus morre, surge um hiato, ou seja, um ponto final e ao mesmo tempo, um rompimento, fica um espaço vazio, que será preenchido pelo silêncio, pois, Jesus o Filho de Deus será posto na tumba sepulcral.

 É interessante notar nesta morte do Filho de Deus, crucificado como um malfeitor, que “segundo o direito romano, Jesus não deveria ter tido sepultura. De acordo com o costume hebraico, deveria ter sido sepultado em qualquer vala”[5], entretanto, não foi o que aconteceu, tudo no drama da paixão cruenta de Cristo tem um sentido, possui uma revelação, uma unidade de promessa e cumprimento, e aqui não é diferente, para cumprir o desígnio de salvação manifestado nas Escrituras, “deram-lhe sepultura com os ímpios (pecadores/mortos) seu túmulo está com os ricos, embora não tivesse praticado violência” (Is 53,9); envolveram o corpo de Jesus com a túnica mortuária e o depositaram num sepulcro.

Na tumba que se abre para ser depositada a vítima, abre-se também o mistério do sábado Santo, dia onde todos os olhos se voltam para a sepultura, o Filho de Deus esvaziando-se de sua condição agora é colocado no lugar dos mortos.

Jesus mesmo tendo vencido o mal pela cruz, ele é posto na tumba sepulcral, porque estando ele morto com os mortos, ele sairia de lá como o primeiro vivente, mas isto só com a Ressurreição como ação do Pai sobre o Filho. Hans Urs Von Balthasar nos faz compreender a necessidade de depois da morte de Jesus, colocá-lo no sepulcro, eis o que ele nos diz:



o poder do Hades já foi despedaçado na cruz, as portas do sepulcro já rebentaram, mas o sepultamento de Cristo e seu estar com os mortos são necessários, para que no dia de páscoa, possa ter lugar a comum ressurreição, com o Cristo-primícias à frente.[6]



Jesus está morto e foi depositado no lugar dos mortos, fecharam o sepulcro com uma grande pedra; aos olhos da época aqui parece o fim da história de um homem que teve a pretensão de ser referência para a vida de muitos, apresentou-se como o Messias, o Libertador e o Salvador, aquele que iria mudar o rumo da história, mas que faliu, terminou como todos os outros “messias”, morto na tumba dos mortais.

Jesus, “agora está fechado dentro do sepulcro, foram prestadas as honras devidas aos seus restos mortais. As testemunhas deste último gesto de piedade afastam-se. Fica o silêncio da morte na companhia das pungentes lembranças”[7]. Na sepultura de Jesus, no estar morto com os mortos, se cumpre a vocação do grão de trigo, anunciada pelo próprio Jesus na sua vida terrena, na esteira de sua missão, “se o grão de trigo não cair na terra, ficará só. Se pelo contrário, ele morrer, dará muito fruto” (Jo 12,24).

Entendamos o sentido destas palavras: Jesus, o Logos Espermatikós, ou seja, a Semente de Vida, o Trigo de Deus Pai agora está morto, e por isso é depositado na terra, de certo modo, no cumprimento da vocação do grão de trigo se manifesta a quenose do Filho, ela é revelação da profunda solidariedade de Deus que é Amor, sua sepultura será sua vitória, por isso que no futuro o grão de trigo produzirá o fruto, não um fruto qualquer, mas o fruto da vida verdadeira, dado como dom pascal pela ressurreição.  

A morte de Jesus não pode ser entendida como tantas outras, ela por si mesma traz uma novidade radical, causa uma reviravolta na história, Jesus não morre só por morrer, mas,

o novo morto é diferente de todos os outros. Morreu por amor, por amor divino-humano: a sua morte foi o maior feito desse amor, e o amor é a coisa mais viva que existe... o seu estar realmente morto e isto quer dizer, a perda de qualquer contato com Deus e com os outros seres humanos é um ato do amor mais vivo[8].





Jesus se esvazia, entrega-se por inteiro e sem reservas, depositado no sepulcro, está morto, sua morte é manifestação de seu amor por nós e pelo Pai, Deus morre amando. O Filho Jesus, longe de Deus Pai, “morto entregando o seu Espírito nas mãos de um ausente; morto com um grito, no qual a palavra já não articulável de Deus atinge o seu máximo”[9].  O esvaziamento de Jesus se torna total, quando no silêncio que paira em virtude de sua sepultura, vemos, a Palavra que sai da boca do Deus Altíssimo, ou seja, o próprio Jesus, em silêncio, Ele não fala mais, a via que traz Deus aos homens, e leva os homens a Deus está rompida, Deus está ausente porque está morto.

No mistério do Sábado Santo como dia da manifestação quenótica de Jesus contemplando-o morto no sepulcro, deve-se viver de forma desconcertante a experiência tão proclamada por nosso tempo: a morte de Deus, “Deus está morto” e fomos nós que o matamos, por meio de nossos pecados assumidos por Ele. E, consequentemente, a morte é seguida pela mansão dos mortos.

No ponto seguinte iremos aprofundar ainda mais esta ida de Jesus ao encontro dos mortos, expressa na definição do símbolo dos apóstolos: “Desceu aos infernos”[10]  ou “desceu à mansão dos mortos”, é o ápice de sua quenose por amor ao Pai e a nós, o ponto máximo e extremo onde Deus chega para resgatar a humanidade. Vê-se que em Deus o movimento é de descida, aniquilamento, só Deus pode abaixar-se ao extremo da condição humana, fazer-se nada por amor, contemplaremos um Deus em silêncio.



[1]BALTHASAR, Hans Urs Von. Teodramática 4. La Accion. P.399. “Jesuscristo se presenta en la historia como el representante de Dios: en su lugar, há de librar hasta el fine el combate contra la hostilidade de la libertad humana”.
[2] BALTHASAR, Hans Urs Von. Mysterium Paschale in Mysterium Salutis III/6. p.96.
[3] DS 302.
[4] BALTHASAR, Hans Urs Von. Mysterium Paschale in Mysterium Salutis III/6. p. 114.
[5] PACOMIO, Luciano. Jesus. p. 234.
[6] BALTHASAR, Hans Urs Von. Mysterium Paschale in Mysterium Salutis III/6. p. 104.
[7] PACOMIO, Luciano. Jesus. p. 237.
[8] BALTHASAR. Hans Urs Von. Credo-meditações sobre o símbolo dos apóstolos. p. 55.
[9] ibid. p. 54.
[10] DS 27.

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