sexta-feira, 6 de abril de 2012

A QUENOSE DO FILHO REVELADA NO MISTÉRIO PASCAL - V

1.4 A Cruz

           

 Chegamos ao ponto crucial de nosso percurso foi para este momento que o Filho de Deus veio, para redimir a humanidade perdida, pois é na cruz elevada no Gólgota que se estabeleceu o julgamento de Deus para com o pecado do homem.

            Vejamos, o Deus justo e misericordioso convida o homem à aliança, contudo, em virtude do pecado, sinal de infidelidade e injustiça, o homem acabou violando os direitos de Deus, ofendendo a altíssima dignidade de Deus, erigindo um débito infinito, porque o ofendido não foi uma mera criatura, mas o Senhor das criaturas, Deus. Pois, bem, se exigiria uma reparação da ofensa, uma expiação.

            Urge um problema a ser resolvido: O homem não pode pagar este débito, só Deus, mas não foi ele quem cometeu tão grande culpa. O que fazer? A resposta delineada no início encontra aqui todo o seu cumprimento, na Encarnação, Cristo une as duas partes, e na cruz ele reata o pacto, a aliança rompida, o sujeito e o objeto do julgamento divino estão unidos. O Filho de Deus numa atitude quenótica de amor experimenta na cruz o que era da humanidade. Von Balthasar nos explica esta realidade da seguinte maneira: “O Julgamento da cruz, onde Deus assume sobre si, enquanto Cristo Homem, toda a culpa de Adão, a fim de ser entregue como personificação viva do pecado [...] por causa da nossa justificação”.[1] 

            A consequência desta ação de Jesus é enfrentar toda a maldição do pecado da humanidade, o que não conhecia pecado, “Deus o fez pecado por nós” (Rm 8,3), o homem das dores cravado na cruz, qual objeto maldito, aparece como o servo sofredor, esmagado pelas transgressões da humanidade, o pecado caiu sobre Ele, qual bode expiatório do Antigo Testamento.

            Todavia, Jesus enfrenta o destino de sua morte em solidariedade com os pecadores, ele deve provar o cálice da ira divina, esta união com os pecadores não é somente expressa no morrer pelos pecadores, ou levar consigo os pecados, mas também, no próprio cenário dramático da Paixão, porque vemos Jesus no centro de um mundo pecador, tendo dois malfeitores ao seu redor. Este tomar sobre si os pecados, tornando-se objeto vil e desprezível, num estado total de aniquilamento, fará Jesus experimentar o estado dos sem-Deus, do distanciamento de Deus. Nas palavras de Jesus na cruz é possível perceber até onde Jesus em sua quenose enfrenta o abandono de Deus.

 A Tradição enumera sete palavras, mas nos debruçaremos sobre as principais que revelam a quenose do Filho no mistério do abandono vivido por Ele. A primeira palavra é a também a principal, fundamento das outras. Ei-la: “Meu Deus porque me abandonaste?” (Sl 22). É uma expressão espantosa, ela não deve ser entendida como uma simples oração, ou um recitar de um salmo em forma terna e doce, pelo contrário, nela se expressa todo o realismo da Paixão como mistério de drama e sofrimento, tragédia que será transformada em amor no aniquilamento total da própria vida do Filho.

Ele ao pronunciar estas palavras se vê sobrecarregado pelos pecados da humanidade que o esmagam e dilaceram, a ponto de parecer um verme (Sl 22,11) e, por isso experimenta a distância de Deus, o seu abandono, irrepetível por sinal, não houve abandono maior que este.

O Filho se sente separado de seu Pai, é uma quenose para o Filho, ele sente a dor dos condenados, da danação, se torna impotente com os impotentes, Jesus em seu sofrimento experimenta o “silêncio de Deus”, uma vez que carrega o pecado da humanidade sobre si, Deus fica distante. “Agora, a infinita atração existente entre o Pai e o Filho fica barrada por uma repulsão igualmente infinita [...] ele se tornou anátema, separado de Deus em prol dos irmãos”.[2] Deste modo se no batismo e na transfiguração, prefigurações de sua Paixão ele ouviu a voz do Pai, agora no cimo do Gólgota, no cumprimento de seu batismo, Deus estava calado.

É claro que Deus Pai nunca esteve tão próximo de seu Filho como neste momento, pois nesta quenose se revela a comunhão de amor do Deus Uno e Trino, o próprio abandono (entrega) que o Pai faz do Filho é no amor (Espírito) e a entrega que o Filho faz de si também é no amor (Espírito); a ponto de percebermos que o Deus cristão foi capaz de se expor ao nada somente porque é Amor e vive para amar, “ninguém sabe tanto quanto o Filho o que significa viver para o Pai, descansar em seu seio... ninguém sabe tão pouco como Ele o que significa estar abandonado por Ele”[3]. Deus se mostra e se define como amor na cruz.

Von Balthasar explica-nos esta ação divina da seguinte maneira:



O abandono do Filho na cruz se torna o evento diretamente trinitário: o próprio Pai se sente abandonado, a morte é em Deus, a morte de Deus e a paixão de Deus, a comunhão mais profunda do Pai e do Filho expressa precisamente em seu ponto mais profundo da morte e da separação, em Jesus abandonado e sangrento na cruz[4].



            Prosseguindo na compreensão das palavras de Cristo na cruz, aparece uma segunda expressão que também manifesta o aniquilamento do Filho: “Tenho sede” (Jo 19,28). A princípio se nos reportamos ao que Jesus falou sobre si, parece uma contradição escutar esta expressão de sua boca, pois em diversos momentos de sua vida Ele se apresentou como a Fonte, o Rio de água viva, tão pleno que esta água jorra de seu interior (Jo 4,10.13; 7,37). Então, que sede é esta que a Fonte sente? É a sede causada pelo sofrimento, seu esvaziamento, sua quenose, sente a sede dos impotentes, sem forças, é o amargor do fel, mas também o amargor do pecado que penetra o seu interior, ele prova o vinho azedo dos pobres, porque Ele é o Pobre de IHWH.

            Neste contexto vemos a impotência de Jesus no gesto dos escarnecedores que zombavam dele: “a outros salvou e a si mesmo não pode salvar” (Mc 15,31). Uma cena semelhante aquela do Getsêmani, na qual Jesus tem poder, mas se faz fraco por amor. É verdade que Jesus tinha poder para não estar na cruz, mas em obediência ao Pai e em sua fraqueza e impotência ele quis estar ali, para salvar não a si mesmo, mas a outros.

            A terceira expressão de Jesus se divide em duas numa total unidade: “Pai em tuas mãos entrego o meu Espírito” (Lc 23,46) e “Tudo está consumado” (telestai) (Jo 19,30). Deveras, quando Jesus entrega toda a sua força, todo o seu amor pelo Pai, o seu Espírito Eterno, uma vez que ele é o Ungido de Deus, pois possui o Espírito em toda a sua plenitude, se esvaziando não tendo mais nada a entregar, se consuma a sua missão, “pelo Espírito Eterno se ofereceu a si mesmo” (Hb 9,14). O que ele tinha em todo o seu interior, o sopro de vida, logo se esvazia e morre, “Jesus exala o sopro divino. Ele morre no Espírito Santo que se conduz e o conduz a Deus. Morre em Deus no Espírito Santo, no qual ele é o Filho”.[5]A missão iniciada sob o selo do Espírito termina selada com o mesmo Espírito, o que foi recebido pelo Filho agora foi entregue.

            Consuma-se a obra (Consumatum est), Jesus está morto na cruz, eis o mistério da redenção, eis a hora para a qual toda a história foi conduzida. Deus se expôs ao nada se esvaziou por completo, o amor iniciado na ceia se cumpre aqui, é o amor que vai até o fim. Vejamos, o mesmo verbo grego que deu início a drama da Paixão com a ceia, se repete aqui, apontando para o fim que chegou: teloV (Telos). Portanto, “esse fim, esse extremo cumprimento do amor foi alcançado [...] no momento da morte. Jesus foi verdadeiramente até o fim, até o limite e para além do limite”.[6] É o fim da vida terrena de Cristo, o seu rebaixamento em extremo que passa a ser desde já a sua glória.

            Outro dado muito importante na Paixão do Senhor é o golpe da lança que o soldado dá no lado de Jesus abrindo-o; sangue e água jorram, significa que a própria vida de Jesus (água, sangue e Espírito) é comunicada a todos, sua morte é sinal de vida, mas também o sangue que escorre é sinal do cordeiro que deveria ter o coração aberto para que todo o sangue escorresse, isto implica seguindo a tradição joanina que Jesus foi crucificado na mesma hora em que os cordeiros eram imolados no Templo, e também qual cordeiro pascal, Ele não teve os ossos quebrados (Ex 12,46). Jesus não é só o bode expiatório, mas é, sobretudo, o Cordeiro, que em seu sacrifício tira, expia o pecado dos homens.

            Ainda no dom do coração aberto Jesus entrega o que tem de mais íntimo para uso público, o espaço onde todos podem entrar, é o Novo Templo, a Nova aliança, o espaço da reunião da nova comunidade, é a Igreja que nasce da quenose de Jesus, do seu amor ao extremo.

            É neste amor do Filho que se esvazia em total doação, tendo o seu coração aberto que vemos a ação da Trindade, Von Balthasar afirma: “quem age originalmente é Deus Pai [...] que em Cristo reconciliava o mundo consigo. E o sinal de que esta obra de reconciliação atingiu o seu fim é o Espírito Santo”.[7] A cruz de Cristo é o meio de reconciliação dos homens com Deus por Ele e no Espírito.

             Voltemos à afirmação inicial que é fundamento para a compreensão da quenose do Filho, Deus é Amor, amor que se esvazia, se entrega e se doa; todo este esplendor, toda a glória que já reluz na cruz é o Amor, é a “estupenda caridade de Deus” (trecho do precônio pascal) revelada na tragédia da cruz; ao que não era digno de amor, Deus revelou-se em amor profundo, amor irado porque odeia o pecado, e ama o homem profundamente a ponto de prestar uma solidariedade jamais vista, assumir a culpa, a maldição do mundo, e, assim toda negação humana foi absorvida em amor.

O sacrifício amoroso de Jesus entregando-se no patíbulo da cruz, como sua manifestação quenótica, faz ver que os sacrifícios antigos eram até certo ponto ineficientes, incapazes de conduzir verdadeiramente o homem a Deus, tornaram-se um nada diante do absoluto e irrepetível sacrifício de Cristo na cruz.  

Desta forma, “o caráter anual dos sacrifícios passa a ser substituído pelo de uma vez por todas, o lugar terreno é substituído pelo santuário celestial; Jesus se diferencia dos sacrifícios diários dos sumos sacerdotes, por oferecer somente uma vez a si próprio”.[8]

Neste sacrifício único de Jesus, Deus se faz tão solidário do homem até no momento no qual o homem muitas vezes está sozinho, ou seja, na morte. No morrer do Filho, um último ponto deve ser destacado, Se é certo que ninguém pode ver o Pai, ninguém pode ir ao Pai e conhecê-lo sem Cristo, assim com a morte do Filho, a Palavra do Pai, o caminho de acesso a Deus está inacessível, um silêncio que perdurará com o túmulo lacrado, um dia imemorável na historia salvífica. Aquele que foi solidário com os homens pecadores na terra será solidário com eles também na morte, é a queda do que se fez maldição, na terra dos malditos, na mansão dos mortos.

  

















[1] BALTHASAR, Hans Urs Von. Mysterium Paschale in Mysterium Salutis III/6 . p. 82
[2] CANTALAMESSA, Raniero. Nós pregamos Cristo Crucificado. p.67
[3] BALTHASAR, Hans Urs Von. Teologia da História. p. 54.
[4] BALTHASAR, Hans Urs Von. Teodramática 4. La Accion. p 298. El abandono del Hijo en la cruz se convierte en um acontecimiento directamente trinitario: el Padre mismo se siente abandonado, La muerte es en Dios, la muerte de Dios y La passión de Dios, la comunión más profunda Del Padre y del Hijo se expressa precisamente en el punto de su más profunda separación, en la muerte abandonada y maldita de Jesús en la cruz.

[5] DURRWELL, François-Xavier. A Morte do Filho-O mistério de Jesus e do Homem. p. 53.
[6] RATZINGER, Joseph ( BENTO XVI). Jesus de Nazaré – da entrada em Jerusalém até a Ressurreição . p. 198.
[7] BALTHASAR, Hans Urs Von. Mysterium Paschale in Mysterium Salutis III/6. p. 94.
[8] BERGER, Klaus. Para que Jesus morreu na cruz? p. 74.

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