sábado, 7 de abril de 2012

A QUENOSE DO FILHO REVELADA NO MISTÉRIO PASCAL - VIII

2.2- O Inferno, como ponto final e extremo da quenose do Filho



É preciso antes de falarmos sobre o Inferno (Hades/Sheol), compreender que no início da Igreja primitiva, no que concerne à profissão de fé, não se falava em “descida de Jesus aos infernos”; nos símbolos aparecia somente a referência aos três dias nos quais Jesus permaneceu sepultado, e a sua ressurreição dentre os mortos. Vejamos como reza o símbolo batismal armeno: “Cremos... na paixão, na crucificação, na sepultura dos três dias[1]. E também no símbolo da fé do séc. III proferido pelo bispo Marcelo de Ancira, reza-se assim: “Creio em Cristo Jesus... foi crucificado e sepultado e ao terceiro dia ressuscitou[2]. Estas referências à sepultura de Jesus e sua ressurreição dos mortos tinham a intenção de indicar a sua solidariedade com os mortos, pois ele também esteve morto. Foi somente no século IX que a afirmação sobre a descida aos infernos entrou no símbolo de fé da Igreja romana a partir do território da Gália, o símbolo que aparece no missal galicano e foi tomado do sermão sobre o símbolo da fé de Cesário de Arles, reza-se: “Creio também em Jesus Cristo que... padeceu sob pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu aos infernos”.[3]

É importante fazer este pequeno apanhado histórico, também observado por Von Balthasar que não utiliza em sua teologia a expressão “descer” – “descendere”, pois segundo ele, embora ela seja empregada em relação a “subir”, ou seja, num sentido de ascensão, como volta ao Pai, entretanto, ela indica uma atividade, um movimento, por parte daquele que está morto, isto não é concebível para Balthasar, pois, Jesus em sua morte está impassível, não exerce força e atividade nenhuma.

 Nosso teólogo prefere usar a afirmação “Ida ao encontro dos mortos”, até porque segundo ele esta afirmação pode ser justificada pelo texto da primeira carta de São Pedro: “Cristo morreu uma vez pelos pecados... morto na carne... foi também pregar aos espíritos em prisão” (1Pd 3,18.19). Então, esta ida aos aprisionados na morte, não é ação do Filho, “é Deus Pai, quem age ativamente”[4] assim como na ressureição e na ascensão, pois,



quando Deus Pai, Criador da liberdade humana, com todas as suas consequências previsíveis... envia o seu Filho ao mundo para o salvar... deve também introduzi-lo no inferno que é a última consequência da liberdade criada. E deve fazê-lo em sua condição de homem morto igual aos mortos, pois só assim Jesus Cristo pode ser introduzido no inferno[5].





No drama do mistério da páscoa, sempre deveremos recordar que o destino assumido por Jesus, para viver a Hora da Redenção do gênero humano, foi entregue nas mãos de Deus Pai, ele não dispõe de si, ele é conduzido pelo Espírito de Deus, vive em obediência filial ao seu Deus e Pai. Desta maneira se observa que:



Jesus em sua dedicação extrema... em seu estar morto juntamente com os defuntos, desvelam-se a atitude e a disposição intencional do Logos divino, que encontram a respectiva expressão adequada nesse ato supremo e extremo: deixar com que o Pai disponha dele em tudo, até o fim de lança-lo na última alienação[6].



Feitas estas observações preliminares, é possível esmiuçarmos a pergunta: onde está Deus? Para onde ele foi? Como vimos em outra parte, com a sua morte, Jesus foi conduzido à tumba sepulcral, mas não se resume em um lugar, mas à própria realidade da morte, é o ser conduzido para baixo, ao mundo ínfero, para uma realidade de extremidade profunda, a princípio sem saída. Se no início de nosso percurso de reflexão sobre a teologia quenótica de Hans Urs von Balthasar afirmou-se que a Encarnação como grande abaixamento de Deus conduz à cruz onde Deus se despe de si, ainda mais agora no ponto mais baixo onde não se tem mais aonde ir, é o estar morto, e isso implica o inferno, “estar-morto significa, eo ipso, estar-no-fundo-do-abismo”.[7] É para esta condição que o Filho de Deus foi conduzido, é aí que ele está.

A morte é o inferno, é isto que significa a afirmação de fé: “desceu aos infernos”, entendamos isso da seguinte maneira:



A palavra inferno é apenas uma tradução errada do termo sheol (em grego: hades) que os hebreus usavam para descrever o estado que vem depois da morte, imaginado de maneira muito imprecisa como uma espécie de existência em forma de sombra, que mais parece um não-ser do que um ser. O sentido original da frase seria, portanto, que Jesus entrou no sheol, ou seja, que ele morreu[8].



            Portanto, Deus para efetuar a obra de redenção da humanidade, por amor aos homens, chega à terra dos fracos, pois fez-se fraco como eles, por isso a sua quenose, ele não pode efetuar nenhum combate com as forças do inferno, isso pressupõe vida e força, sua fraqueza o impossibilita de travar um combate, então, não é possível conceber uma luta de Jesus com satanás com o reino da morte.

O Sheol é o lugar do esquecimento, do inteiro isolamento, do vazio, do não-conhecimento, aqueles que lá estão se encontram privados de toda força e vitalidade. Cristo vai ao encontro dos miseráveis que habitam na terra do esquecimento, no lugar onde não se louva a Deus, onde não se pode ver Deus, “Volta-te, Senhor! Liberta-me! Salva-me por teu amor! pois na morte ninguém se lembra de ti, quem te louvaria no Xeol?”(Sl 6,6).

            É admirável perceber até onde Deus chega por amor ao ser humano, “para realizar o trunfo final sobre o pecado, sobre toda morte e sobre satanás, assume todo esse aniquilamento”[9]. Cristo desce ao sheol, porque assumiu até as últimas consequências as misérias e fraquezas humanas, ele quis se conformar totalmente à lei de tal natureza, e também a esta lei quis se apresentar em forma humana nos infernos. Todavia, como entre os mortos não existe comunicação, a sua presença neste estado de solidão é sinal de íntima comunhão e solidariedade com os impotentes. O Filho de Deus tocou todos os pontos da criação para que a humanidade o pudesse encontrar em todas as partes e até mesmo no mais profundo abismo, “o salvador tomou sobre si representativamente toda a experiência. É precisamente assim que Ele se mostra como o único que indo além da experiência comum da morte, mediu as profundezas do abismo”.[10]

É importante ressaltar que nesta hora enfiado no abismo profundo do inferno, Jesus experimenta o extremo abandono de Deus Pai, com a sua morte o Filho mergulha numa experiência de estar numa realidade que por si mesma já é anti divina, incompatível com Deus: A morte, o Hades, e Santanás. Esta realidade amarga de solidão que o Filho deve enfrentar foi estabelecida num acordo trinitário, entendido pela entrega que o Pai fez de seu Filho, abandonando-o, e na entrega de si que o Filho fez ao se dispor a viver este abandono, é um auto estranhamento jamais visto, mas que o Filho em sua obediência ao Pai, por livre amor deve enfrentar, é o cume de toda a obediência do Filho ao Pai, e por isso mesmo, traz em si uma novidade teologicamente falando: é a obediência única e jamais vista de um cadáver.

É uma solidão total que de certo modo começou no Getsêmani, perpassou o Calvário, pelo grito da cruz, e se consuma agora no Sábado Santo, e como foi falado em outro lugar do texto, este experimentar o abandono divino é consequência do pecado humano com toda a sua carga dolorosa, é a poena damni, que ocasiona a perda de Deus, é o cair no lodo, na lama da podridão da iniquidade, pois verdadeiramente o pecado tem como salário a própria morte.

 O que o Filho enfrenta em sua alma é um abandono, uma solidão tão imensa que “nenhum tu seria capaz de chegar até ele... diante da solidão e do assombro verdadeiro e total, aquilo que a teologia chama de ‘inferno’”.[11]

Quando o Filho tomou sobre si os opróbrios da raça humana, carregando a sua culpa, este pesado fardo vai empurrando-o para baixo, ele vai se esvaziando, ao enfrentar a morte, é agora empurrado ainda mais, toca o profundo da miséria humana, é submetido ao inferno.

 Como entender esta ação do Filho? A única explicação de sua ida ao encontro dos mortos é o Amor, “amor louco” é “a loucura de Deus” que revoluciona a história humana, dando-lhe um sentido novo, “Deus é fraco e que não pode fazer outra coisa senão sofrer conosco... amor louco de Deus pelo homem... a quenose extrema é o inferno de Deus. Tudo por causa do ‘amor louco’”.[12] Parece ilógico este dado, pois no sheol como estado de extrema solidão onde nenhuma voz sequer é ouvida, onde todos os mortos estão sozinhos, onde nenhum amor pode chegar para preencher o vazio, vemos Deus (o Amor), ele está também agora no inferno. É um Amor que não tem limites, Deus que é o Tudo se faz nada para preencher o vazio que há no ser humano.

Nesta via percorrida até aqui numa busca de compreender o mistério quenótico de Jesus, deveremos observar ainda no sábado santo, os motivos desta ida de Jesus ao encontro dos que estão mortos, não foi um envio qualquer, tinha uma intenção, e como o mistério pascal é uma ação salvífica de Deus, a ida ao encontro dos mortos é um acontecimento de salvação.






[1] DS 6.


[2] DS11.


[3] DS 27.


[4] BALTHASAR, Hans Urs Von. Mysterium Paschale in Mysterium Salutis III/6. p. 100.


[5] RIBEIRO, Clarita Sampaio Mesquita. Mysterium Paschale-A quenose de Deus segundo Hans Urs Von Balthasar. p. 132.
[6] GUERREIRO, Elio. Hans Urs Von Balthsar. p. 227. Cit. Artigo de Von Balthasar sobre a descida aos infernos que se encontra na sua obra  De lo Spirito e L’istituzione in Saggi Teologici IV, Brescia, Morcelliana, 1979, 333-343.
[7] ibid. p. 103.
[8] RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo. p. 220.
[9] GONZÁLEZ, Marcelo. “Hans Urs Von Balthasar – a Kénosis e a cruz como acontecimentos trinitários” in PIKAZA, Xavier, Dicionário Teológico o Deus Cristão. p. 86.
[10] BALTHASAR, Hans Urs Von. Mysterium Paschale in Mysterium Salutis III/6. p. 114.
[11] RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo. p.221.
[12] KOUBETCH, Volodemer. Cit. Paul Evdokimov, L’amore folle di Dio.  in Da Criação à Parusia. p. 92.

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