terça-feira, 3 de abril de 2012

A QUENOSE DO FILHO REVELADA NO MISTÉRIO PASCAL - II



1.1. A Ceia



O mistério pascal em seu drama é iniciado com o episódio da Ceia que é revelação do amor até o fim (teloV). Jesus, antes de padecer sua paixão, de efetuar sua passagem do mundo ao Pai, ao seio divino, desejou ardentemente cear com os seus. À sua hora chegara, uma hora irrepetível e à qual se deverá voltar sempre, como está formulado na ordem de Jesus aos discípulos de repetir esse ato, “fazei isto em minha memória”(Lc 22,19). Com efeito, nos diz Von Balthasar: “para além dela nada mais existe, exceto a realização daquilo que ela espontaneamente inaugura: a morte”.[1] A ceia de Jesus inaugura a morte, ou seja, Ele irá antecipar, impregnar no pão e no vinho a hora de sua paixão, por isso se fala que a “Hora” já chegou.

Na última ceia se vê em Jesus o desejo de se entregar em favor de muitos, de ser servo e escravo para os seus, “desejei ardentemente comer esta páscoa convosco antes de sofrer”(Lc 22,16); é justamente nesta atitude de Jesus em dispor-se de si que percebemos uma ação quenótica. Para tal compreensão do mistério da ceia a história bíblica nos aponta para duas tradições evangélicas (sinótica e joanina), as quais descrevem o conteúdo da ceia que revelam em Jesus o seu esvaziamento como doação de amor aos seus. Nunca é de mais recordar, o que nos leva a se debruçar sobre o mistério da quenose do Filho é a revelação daquilo que Deus é: Amor, doação, renúncia, desprendimento de si.

Vejamos os textos das duas tradições, sempre é bom recordar que os Relatos Pascais, são assim chamados por três motivos: transmitem-nos algo (re-latam o evento da Paixão); estão relacionados com os eventos do AT e nos colocam em relação com o que se deu naquele tempo, ou seja, o passado se torna presente pela força do Espírito que impulsiona a História da Salvação. Tomemos o Evangelho de Lucas para a tradição sinótica:



Veio o dia dos ázimos, quando devia ser imolada a páscoa... quando chegou a hora, ele pôs-se à mesa com seus apóstolos e disse-lhes: “desejei ardentemente comer esta páscoa convosco antes de sofrer... e tomou um pão, deu graças, partiu e deu-o a eles, dizendo. ‘Isto é o meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em minha memória’. E, depois de comer, fez o mesmo com a taça, dizendo: ‘Essa taça é a Nova Aliança em meu sangue, que é derramado por vós’”.[2]







É de Tradição Sinótica mostrar que na Última Ceia de Jesus com seus discípulos se deu a Instituição da Eucaristia, como alimento e memorial de sua Paixão. Observemos o texto da Tradição Joanina que não nos transmite a Instituição da Eucaristia, mas o admirável gesto do Lava-pés, como sinal prefigurativo da doação oblativa que Cristo, “o Mestre e Senhor”(Jo 13,13) fará na cruz. Eis o texto:





Antes da festa da páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo ao Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo. Amou-os até o fim. Durante a ceia... levanta-se da mesa, depõe o manto e, tomando uma toalha, cinge-se com ela. Depois põe água na bacia e começa a lavar os pés dos discípulos e a enxuga-los com a toalha que estava cingido.[3]





O interessante nos dois relatos pascais é a Palavra Hora, típica da tradição joanina, onde ela aparece por diversas vezes, mas presente também no relato lucano. Ela indica a chegada do momento definitivo da missão para qual o Filho amado Jesus veio, é a Hora da revelação do amor maior, manifestado no seu esvaziamento quenótico. Von Balthasar faz uma pequena análise daquilo a que se refere às duas tradições, a Sinótica e a Joanina para a compreensão da quenose do Filho:



A primeira é um relato da ceia onde se fala de uma auto-distribuição e se faz referência à celebração de uma nova aliança, e a segunda é um relato sobre o último serviço prestado por Jesus: a atitude interior de serviço [...] atitude interior (simbolizada no lava-pés) concretiza-se definitivamente na distribuição de si próprio, a qual antecipa e introduz a paixão[4].





Quando Balthasar, seguindo a tradição joanina aponta na ceia para o gesto do lava-pés, é perceptível nesta atitude interior e exterior de Jesus um gesto de doar-se, o dom de si aos outros. 

Na ceia, o Filho do Altíssimo faz resplandecer a condição de servo, de escravo que Ele assumiu (Fl 2,7), despojou-se de sua realeza, depôs o manto, e realizou uma ação própria dos escravos, porque Ele é o escravo que ama a humanidade e por ela se entrega. Já tinha se inclinado aos homens uma primeira vez na encarnação, agora uma segunda inclinação acontece no ato do lava-pés.

Por que Jesus lava os pés dos seus? Primeiro, para revelar quem de fato ele era, Verdadeiro Deus, um Deus Amor, a ponto de se revelar na pequenez de um servo, “O Filho de Deus se nos deu a conhecer na forma de servo, se a forma servi faz parte do que é Deus, a forma Dei pertence-lhe igualmente”[5]; por isso o seu aniquilamento ao se inclinar e lavar os pés de seus discípulos. Segundo, Jesus lava os pés dos discípulos para revelar até que ponto Deus ama os homens, não somente assumindo a condição de homem, mas se pondo a seus pés.

            Neste gesto admirável de Jesus de amor serviçal percebe-se o total esvaziamento de si, é uma descida da própria divindade, é esse o eterno movimento de Deus; “despoja-se do seu esplendor divino, ajoelha-se por assim dizer diante de nós, lava e enxuga os nossos pés sujos, para nos tornar capazes de participar no banquete nupcial de Deus”.[6]

            Na segunda parte da ceia a auto-entrega de Jesus se revela mais sublime ainda, ele se doa totalmente, foi “aos pés”, agora vai ao “interior” do homem. Jesus institui o admirável sacramento do amor no pão e vinho como sinais sagrados da entrega de seu Corpo e Sangue na cruz, é a “doação que Jesus faz de si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus”[7]. É na páscoa dos judeus, que nasce a páscoa de Cristo, a páscoa dos cristãos, onde o novo e definitivo cordeiro se entrega e se doa como Verbum caro e Verbum Panis; o Verbo que se fez carne entregou-se no Pão, para alimentar os seus, eis a novidade pascal, “já não era a páscoa dos judeus, mas a dos cristãos. Ia-se instituir aquele que é por excelência, o Mistério da fé”[8]. Portanto, o mistério excelso da Eucaristia é fruto da entrega quenótica do Filho na sua páscoa.

Este esvaziamento de Jesus se entregando como alimento, a ponto de ir ao interior do homem, fazendo-o viver a sua Vida, não deixa-nos inertes, pelo contrário, da parte de quem o recebe é a inserção no corpo do crucificado e a atitude de se deixar guiar pelo mestre até a cruz, como concrucificados.

O caminho com Jesus no mistério da sua paixão até a cruz vai revelando em cada passo a crescente de sua quenose, no passo seguinte adentraremos no mistério do Getsêmani, na noite da agonia, da oração e da luta em perseverar na obediência à vontade do Pai, em ir em frente para dar a própria vida em regaste de muitos.




[1] BALTHASAR, Hans Urs Von. Mysterium Paschale - in Mysterium Salutis III/6. p. 63.
[2] Lc 22,7.14-15.19-20
[3] Jo 13,1-2.4-5
[4] BALTHASAR, Hans Urs Von. Mysterium Paschale - in Mysterium Salutis III/6. p. 63.
[5] LADARIA, Luis F. A Trindade – Mistério de Comunhão. p. 50.
[6] RATZINGER, Joseph ( BENTO XVI). Jesus de Nazaré II. p. 56.
[7] BENTO XVI. Exortação Apóstolica pós-sinodal Sacramentum Caritatis. nº 1.
[8] NERY. P.J. de Castro. Paixão e Morte de Jesus. p. 61.

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